Thais Valim
Mestranda (PPGAS/UFRN)
Em novembro de 2015, o Ministério da Saúde (MS) emitiu uma nota confirmando a relação entre a epidemia do Zika Vírus (ZIKV) e a quantidade galopante de casos de recém-nascidos diagnosticados com microcefalia que vinha sendo observada no país nos meses anteriores. A comprovação da “dobradinha” entre Zika e microcefalia agravou os contornos da epidemia. Até aquele momento, as manifestações clínicas da infecção pelo Zika Vírus não constituíam um quadro de preocupação: apesar de desconfortável e dolorosa, a infecção possuía um tratamento eficaz e, em geral, não resultava em consequências graves para o paciente. Com a confirmação da transmissão vertical, no entanto, esse quadro se altera e a epidemia passa a ser interpretada como um evento crítico, sendo alçada à condição de Emergência Pública de Importância Nacional (ESPIN).
Do início da ESPIN, em 11 de novembro de 2015, até abril de 2018, foram confirmados mais de três mil casos de alterações congênitas relacionadas à infecção pelo ZIKV. O acompanhamento das crianças diagnosticadas tem revelado um amplo e variado espectro de sintomas. Há bebês cujo perímetro cefálico não desvia tanto da média enquanto em outros a proporção diferente da cabeça é evidente. Há quem use botas ortopédicas, óculos, coletes para corrigir a postura, bandagens utilizadas para estimular a musculatura, enfim, uma ampla gama de sintomas acompanhada de uma ampla gama de tratamentos.
Apesar das diferenças – que são muitas! -, as mães e famílias apontam certas “fases” do desenvolvimento que têm sido percebidas em uma grande quantidade de crianças. Até agora, muitas cuidadoras elencam três estágios da síndrome. O primeiro deles, no puerpério, é conhecido como “estágio do choro”. Ao que parece, os nenéns nascem muito irritadiços, reclamam bastante de dor e choram muito. Um choro agudo e incessante. Muitos médicos, no início da epidemia, ministravam diazepam e rivotril para as crianças nessa fase. O choro passava, mas o efeito colateral era um estado de letargia do infante. Algumas mães nos denunciaram que esse tratamento resolvia tão somente o aspecto clínico – o choro -, mas criava mais problemas do que soluções a longo prazo. Foi nessa época que muitas famílias descobriram o “ofurô”, uma técnica de banho japonesa adaptada para o cuidado infantil. Consiste em um balde em que a criança fica flutuando só com a cabeça de fora. Devido à pressão das arestas do balde, o corpo da criança não afunda e ela fica relaxada lá dentro. Dizem que recria a atmosfera do útero e as crianças apreciam muito a sensação. A técnica foi muito bem recebida no contexto da epidemia: os bebês mais novinhos aceitavam bem, se acalmavam. Era uma estratégia terapêutica que não passava pela medicalização do choro, o que, em termos práticos, resultava em um medicamento a menos tanto para a criança tomar quanto para a mãe comprar.
Passada a fase do choro, e continuando a crescer, muitas das crianças começam a ter convulsões. As crises epilépticas representam um verdadeiro assombro na vida das famílias, pois sempre precisam ser mediadas por arranjos medicamentosos. Larissa, por exemplo, uma das bebês que conhecemos em nossa pesquisa, estava completando ainda seu segundo ano de vida e já havia passado por 8 tipos diferentes de remédios. Outro temível aspecto das crises é que muitas famílias relatam que o impacto da convulsão no corpo da criança faz com que ela tenha “regressões” de desenvolvimento. Muitas mães relataram que os filhos vinham engordando, comendo comida “machucadinha”, engolindo adequadamente até que vem a crise e a criança “esquecia” e “desaprendia” o que tivesse acumulado até então.
Essa sequência da crise seguida por um “retrocesso” de desenvolvimento está intimamente conectada à terceira fase identificada pelas cuidadoras: a da broncoaspiração. Com a crise, muitas das crianças passam a ter dificuldades para engolir os alimentos. Quando o alimento não é corretamente deglutido, ele não segue o percurso esperado de passar pelo esôfago até chegar no estômago. Ele faz outro trajeto: primeiro, passa pela laringe, desliza pela traqueia e chega aos pulmões, o que pode até matar uma pessoa. Dessa maneira, muitas das crianças têm sido introduzidas à alimentação por sonda gastrointestinal (GTT). O problema é que, uma vez colocada a sonda, são raros os casos em que as pessoas conseguem voltar a se alimentar pela boca.
Em alguns casos, a sonda é de uso imprescindível e sua não-utilização pode ter consequências graves para as crianças. Acontece que muitas mães têm relatado uma antecipação por parte dos profissionais de saúde da inserção da alimentação via sonda: “Na verdade, queriam colocar a sonda nele, mas eu não deixei. Ele vinha ganhando peso, vinha ganhando devagar, sabe, mas vinha ganhando. E é isso que importa. Queriam colocar a GTT. Eu não achei uma boa ideia porque ele ia acabar parando de usar a boca e isso ia atrapalhar a fono dele. Eu neguei, não deixei. Além do que, tem que ter todo aquele cuidado com a higiene e tudo”, nos relata Sara, uma das mães conhecidas no âmbito do projeto. Para a mãe, seria muito melhor investir na fonoaudióloga, ou seja, apostar nos efeitos positivos da terapia no desenvolvimento de seu filho em vez de mediar com a GTT.
Assim como no estágio do choro e das convulsões, também nessa fase da deglutição, a preocupação maior das mães é evitar a medicalização excessiva das crianças. Como sugere o relato de Sara, a GTT é um acoplamento que demanda higienização, a troca das mangueiras pelas quais percorre o alimento, há uma série de cuidados e custos que ficam à encargo da família. E é sempre importante frisar que estou aqui me referindo aos estágios comuns da síndrome. Há vários outros sintomas específicos ao quadro de cada criança. A GTT, no caso de Sara e sua família, é inserida em um contexto amplo de óculos, botas ortopédicas, medicamento para musculação. O que as narrativas das mulheres parecem nos revelar é que, por muitas vezes, os médicos e profissionais de saúde parecem não conseguir enxergar a totalidade de um tratamento. Parece que, tratando o sintoma, tudo está resolvido. O que essas mães estão tencionando é, justamente, a forma de tratamento. Estão evidenciando que o tratamento não se encerra em seus aspectos clínicos, ele é inserido em um contexto social específico que precisa ser levado em conta. Não é somente o tratamento do sintoma, mas como esse tratamento se insere na vida que é importante aqui.
*Esse é um dos textos produzidos no âmbito do projeto de pesquisa: “Zika e microcefalia: Um estudo antropológico sobre os impactos dos diagnósticos e prognósticos das malformações fetais no cotidiano de mulheres e suas famílias no estado de Pernambuco”. Os textos partem de histórias marcantes e intensas que nos foram relatadas por jovens mulheres da Grande Recife que estão, no momento, vivendo a maternidade de crianças com a síndrome congênita do vírus Zika. Esse projeto de pesquisa vem acontecendo desde 2016, com visitas semestrais à capital pernambucana. É coordenado pela Professora Soraya Fleischer do Departamento de Antropologia/Universidade de Brasília e conta com o apoio da FINATEC/UnB e do CNPq.