Cleide Jane Figueiró, que realiza um trabalho sobre prevenção dentro das igrejas evangélicas
Dar voz a quem está em contato diário com as pessoas que vivem na periferia é a única forma de compreender quais são as demandas necessárias para que a informação sobre prevenção chegue no território, e atinja, efetivamente, uma população que fica à margem das necessidades básicas.
Na semana do Dia Mundial de Luta contra a Aids, o CEDAPS inicia o especial Rede de Histórias. Todo mês será lançada uma entrevista com uma liderança integrante da Rede de Comunidades Saudáveis, começando por Cleide Jane Figueiró, moradora de Duque de Caxias, munícipio da Baixada Fluminense. Cleide Jane é professora, educadora social e ativista do movimento de Aids. Sua militância se concentra na Baixada e o foco de sua atuação é o apoio as pessoas que vivem com HIV/Aids. Cleide Jane fundou a ONG AMIRES – Associação Missão Resplandecer, em 1999, localizada no mesmo lugar em que vive, Caxias.
CEDAPS: Cleide Jane, conta para a gente: como a AMIRES começou?
Cleide Jane: A AMIRES surgiu em 1999 com um grupo de pessoas que faziam tratamento no posto de saúde do Centro Municipal de Saúde de Duque de Caxias. Naquele tempo a gente não sabia muita coisa, só ia para lá. O remédio tinha surgido há pouco tempo, então ninguém sabia quase nada – ou não sabia nada. Só queríamos entender o que estava se passando com a gente e com o atendimento que estávamos tendo ali naquele centro de saúde. Esse grupo de pessoas foi chamado de Grupo HIVida. Minha militância começou ali.
Em 2001, ainda como Grupo HIVida, nós nos tornamos pessoas jurídicas, com ata, estatuto e CNPJ. E a nossa luta continua sendo a busca pela qualidade de vida, incidência política, direitos, medicação, exame, internação, tudo contra o estigma e contra o preconceito. Em 2008, mudamos o nome para Associação Missão Resplandecer (AMIRES). Nessa época, tínhamos uma sede na antiga rodoviária de Caxias. O espaço nos foi tomado, ficamos sem sede e automaticamente nos desarticulamos. Cada usuário foi para o seu lado e até hoje não conseguimos resgatar todos que atendíamos naquela época, muitos eram de outros municípios, éramos uma referência na Baixada. Foi quando pensei que fecharíamos.
“Pensei: vou fechar, não tem como. Sem sede não tem como agir, não tem nada”.
Foi quando conseguimos ajuda da igreja evangélica Assembleia de Deus, que nos cedeu um espaço pois reconheceu a importância do nosso trabalho. Foi nosso primeiro apoio vindo de uma instituição religiosa, e é onde estamos até hoje.
CEDAPS: Sabemos que há um conflito de ideias entre religião e saúde, principalmente no âmbito da prevenção. Quais foram os meios que você encontrou para introduzir, nas igrejas, debates que alertassem que a prevenção é necessária?
Cleide Jane: Começamos a ter casos de pessoas que atendíamos, que acreditavam ter sido curadas do HIV nas igrejas. Essas pessoas paravam de tomar os remédios e vimos o número de óbitos crescer, isso começou a nos preocupar. Quando percebemos que a saúde estava sendo associada ao tratamento pela religião, começamos a trabalhar o assunto, timidamente à princípio.
Fizemos o 1º Seminário Temático Gospel para Mulheres, na igreja Assembléia de Deus, com o tema Mulher Virtuosa, quem a achará? O objetivo era conscientizar as mulheres, que virtuosas são as que cuidam primeiro de si, da sua saúde, da sua aparência, da sua postura, e fomos introduzindo a questão da prevenção, da sexualidade, do autocuidado, do tratamento.
Em seguida fizemos o 1º Seminário para Ministros e Pastores Evangélicos, com um público de 70 pastores. Nesse seminário explicamos a importância das pessoas continuarem a tomar sua medicação, porque precisamos diferenciar: uma coisa é a cura pela fé e outra coisa é a cura pela ciência. Foi essa fala que nos introduziu dentro das igrejas: diferenciar a cura pela fé da cura da ciência, porque a pessoa pode ter a fé dela, mas não pode abandonar o tratamento médico.
“Uma coisa é a cura pela fé e outra coisa é a cura pela ciência”
Então criamos o Grupo Aids nas Igrejas. Visitávamos igrejas e montávamos um pequeno núcleo ali, sempre monitorando, levando material e fazendo palestras. É claro, tudo de acordo com a doutrina e as normas da igreja visitada. É um trabalho muito minucioso, não é simplesmente chegar lá e falar de Aids e prevenção, tem que ter cuidado e estratégia, ir para uma escola dominical, participar de um culto e ter a palavra para poder falar.
“É um trabalho muito minucioso, não é simplesmente chegar lá e falar de AIDS e prevenção, tem que ter cuidado e estratégia”
Quando começamos a discutir Aids nas igrejas, entendemos que muitos pastores são leigos, eles falam e fazem coisas por pura ignorância, e precisamos entender que o testumunho vem do membro da igreja, começamos a construir o nosso trabalho a partir disso. O grupo Missionários da Fé Positiva que hoje é o Movimento Nacional dos Missionários da Fé Positiva, viaja pelas igrejas do Brasil para desmistificar essa coisa da cura pela fé. Esses missionários estão sendo capacitados, serão identificados com crachá e carta de recomendação feita por um bispo de uma igreja evangélica para que, assim, eles tenham autonomia para entrar nas igrejas e falar sobre o tema “Saúde e Prevenção: cura pela fé e cura pela ciência”.
CEDAPS: E a sua história de vida?
Cleide Jane: Eu me descobri com HIV em 1996, não tinha tratamento para mim em Caxias naquela época, fiquei muito doente cheguei a pesar 30kg. Não recebia o tratamento adequado no hospital em que estava. Foi quando a minha prima assinou um termo de responsabilidade, me tirou de lá e me levou para o Hospital do Fundão/UFRJ. Naquele momento fiz um voto: de que iria trabalhar para que ninguém mais passasse o que passei.
CEDAPS: Como você vê a importância da assessoria do CEDAPS à RCS – Rede de Comunidades Saudáveis, da qual a AMIRES faz parte?
Cleide Jane: Conheço o CEDAPS há muitos anos, antes da AMIRES se tornar pessoa jurídica. Participar da Rede e receber assessoria do CEDAPS fez toda diferença, porque aprendemos a caminhar, e esse apoio faz diferença até hoje. A assessoria nos ajuda a escrever projetos, relatórios, com os eventos e capacitações, empréstimos de equipamentos e materiais… Ficar longe da Rede não dá!
CEDAPS: Qual a importância de levar os debates sobre prevenção em territórios como a periferia e subúrbio?
Cleide Jane: Nesses territórios a informação não chega. Quando chega é com atraso e desatualizada. São territórios difíceis de transitar, existem as “Faixas de Gaza”, eu não posso passar naquela rua e fulano não pode vir na minha rua, por isso a gente trabalha com quem é do próprio território. Tem que ter um olhar sensível para trabalhar na periferia. Quando a localidade varia é uma linguagem diferente, é preciso trabalhar com a realidade e com a estrutura que o local oferece, tem gente que não quer sair de trás da mesa e do ar condicionado.
“Não dá para chegar nesses territórios e agir como se estivesse em qualquer bairro da Zona Sul”
CEDAPS: Você é uma liderança reconhecida por trabalhar com o acolhimento de Pessoas Vivendo com HIV e Aids (PVHIV) e seus familiares, desde o acolhimento até o encaminhamento para o serviço especializado de saúde. Nos fale um pouco sobre a sua atuação?
Cleide Jane: A pessoa tem uma história de vida, nós trabalhamos com a história dela. Fazemos conversa entre pares, mostro para ela que eu vivo com HIV há 20 anos, eu sobrevivi e ela vai sobreviver também. A vida continua e fazemos o trabalho de adesão aos medicamentos.
O encaminhamento para o atendimento médico necessário é feito pela assistente social da instituição (AMIRES), tem também atendimento psicológico com um profissional. Acompanhamos a pessoa na consulta, monitoramos como ela está em casa, como está com a família, como está na escola…. Temos um prontuário das pessoas que são atendidas pela instituição, e se tem um mês que alguém não aparece, nós ligamos e fazemos visitas, é um acompanhamento permanente.
Conheça mais sobre a AMIRES, acesse:
https://www.facebook.com/missaoamires/
Assim como Cleide Jane, outras lideranças comunitárias terão oportunidades de falar sobre suas vivências aqui no site do CEDAPS, aguardem os próximos relatos do especial Rede de Histórias.