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“Devemos resistir à política retrógada”

Luciana Borges, médica e doutora em saúde da criança e da mulher, é a última convidada da série de entrevistas em celebração aos 25 anos do CEDAPS

Conselheira do CEDAPS, médica pediatra e de família, doutora em saúde da criança e da mulher pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e professora adjunta da Universidade Estácio de Sá e da UERJ, Luciana Borges é enfática ao afirmar: “são indeléveis as marcas que aparecerão na próxima década no campo da atenção primária em nosso país”.

Em entrevista para celebrar os 25 anos do CEDAPS, ela falou sobre a importância do SUS, os avanços dos 30 anos do Sistema e os desafios para o futuro, sobre Atenção Básica e Estratégia Saúde da Família e a respeito dos desafios que estão por vir.

  • A existência do SUS, desde 2016, vem sofrendo fortes ameaças. Qual a importância da manutenção do sistema, em especial para atenção primaria?

Qualquer política pública de saúde sofre em um país onde as questões partidárias são mais importantes do que a sociedade, como é o caso do Brasil. Aqui, as mudanças de governos implicam em mudanças de visão política, comprometendo o funcionamento da lógica de atuação de serviços e comprometendo a estabilidade do atendimento ao cidadão. Cada “faraó” que surge em nosso país quer ter uma “pirâmide” maior que o anterior e, com isso, vemos o desmonte e a desorganização dos serviços, em âmbito federal, estadual ou municipal.

Este comportamento é extremamente perverso para a atenção primária, visto que ela atua numa lógica de linha de cuidado e necessita de articulação com diferentes formas de complexidade do sistema de saúde. Necessita articulação com outros campos de serviços, como educação, segurança, transporte, trabalho e economia. O seu potencial, que é essa articulação intersetorial e esse seu olhar ampliado sobre a sociedade, acaba também sendo seu ponto mais frágil. 

  • Nesses últimos 30 anos, o que avançou na saúde pública e o que ainda precisa de atenção?

Os avanços foram: olhar ampliado sobre o processo saúde e doença; organização da porta de entrada do sistema através da Estratégia Saúde da Família (ESF); surgimento do ator social Agente Comunitário de Saúde; desenvolvimento da atenção através da lógica da linha de cuidado, em detrimento da lógica programática; fortalecimento de ações para situações ligadas às causas externas; conteúdo curricular das graduações em saúde, com fortalecimento de temas de atenção primária; desenvolvimento de estratégias de capacitação em serviço, através da lógica da educação permanente; e ampliação do acesso aos serviços de saúde, ao recebimento de medicamentos e exames de alta complexidade.

Já os pontos de atenção são: política partidária interferindo em políticas de estado; saúde como moeda de troca para benesses; distanciamento das premissas da Constituição de 88; e movimento para utilização da saúde suplementar para barateamento do investimento na atenção primária.

  • Qual a importância da atenção primária e da estratégia da saúde da família para garantir p acesso das populações de favela e periferias à saúde pública?

A atenção primária e a ESF devem ser acessíveis a toda a população do país. Mas, especificamente, as populações com maior vulnerabilidade social podem ser favorecidas por ferramentas de atenção primária que garantam a ação no território de moradia do indivíduo, que garantam acesso a níveis de maior complexidade quando necessário e que desenvolvam ações que estejam relacionadas não somente ao adoecer, mas também ao processo de educação e promoção da saúde.  Equipamentos públicos próximos da população, numa perspectiva  geográfica e cultural, tem uma chance de maior impacto na vida das pessoas e nas suas necessidades de saúde.

  • De que forma você vê a atuação do Cedaps no fortalecimento dessa estratégia e dessas pessoas?

O fato do CEDAPS ter uma trajetória balizada no apoio ao desenvolvimento de lideranças comunitárias, respeitando a cultura local e estimulando o reconhecimento territorial das necessidades e prioridades, capaz de alinhar seu conhecimento adquirido ao longo de todas essas décadas com tendências de políticas públicas nacionais e internacionais. O CEDAPS é um “agente comunitário/social”, que faz a ligação da sociedade civil com setores privados e públicos, além de traduzir as necessidades da população nos locais aonde atua.

  • Nos últimos anos, temos visto um aumento na violência urbana, retrocessos no campo do investimento público em saúde. Já é possível ver o impacto disso na atenção primária? Como enfrentar os desafios que estão por vir?

É indelével as marcas que aparecerão na próxima década no campo da atenção primária, no nosso país. Parece que a “moda” da AP no Brasil está acabando. Não sei o que nos reserva o futuro governo, mas temo pelo uso do modelo de saúde americano para moldar as novas políticas de saúde. Violência é a ausência de políticas públicas que garantam condições mínimas de cidadania em um país. Se as políticas públicas não são direcionadas ao cidadão e sim a mecanismos otimizadores de recursos ou facilitadores de corrupção, estamos fadados ao fracasso. Como enfrentar os desafios? Desenvolvendo mecanismos internos de resistência a uma política retrógrada, acreditando que podemos fazer melhor, mesmo em nosso trabalho de formiguinha, não fugindo aos nossos princípios e, acima de tudo, tendo a certeza de que tudo passa.